Alaor Rocha já foi mais escritor. Nascido em São Paulo/SP, é professor de língua inglesa e redator publicitário em Goiânia/GO. Foi publicado em revistas que não existem mais.
sabá
teu reino de areia e cristal
soterrado em história e tempestade
me deixa ver tua coroa
me deixa ver tua cara azul
de morte mal morrida
e veneno conduzido
saiu no jornal, o obituário é seu
em posse da queda
as joias nas mãos podres
que já tocaram prédios
já tocaram robôs
limpadores de prédios
um faraó na sala de reuniões
um chairman embalsamado:
arabian blend
você já ouviu falar naquela livraria
em pinheiros
a gente pode ir lá um dia
antes de você dissolver
em areia
e
mescal
porziuncola
foi ali que ele morreu
acho que era com aquela voz ruidosa
estalidos obtusos
às vezes roucos
ninguém ali sabia sentir saudade
acolhido em endométrio eu não mais sentia frio
musgo e mais musgo troçando meus pés
as botas em meus pés
quando a festa acaba é nossa obrigação
velar o lixo
dobrar cada festão e ligar
para quem ficou de fora
— especialmente quem nunca quis entrar
cavidades escusas
quando vejo a luz púrpura do apartamento 402
sou feito de cal e me entremeio
andares ternos e uma canção
elegia a bertrand russell
ninguém mais precisa dessas guerras
giro a chave e está tudo tão escuro
guinchos aos pés do concreto
farejo cômodos como quem procura algo
ei: não era você
que não tinha o que comer?
a saliva me escapa
rábica/rápida
perco todos os apetites
mesmo no soslaio de um reflexo
os ganidos à beira de uma carroça
foi ali
à beira de uma carroça
que ele morreu com méritos
estou um caco, digo
amanhã a santa do prédio vem me fazer companhia
ela me entrega a terapia
no carpete esquálido
é em cada pequena conquista
que venho enxergando
o tanto que já deixei
de sonhar
portugal
tem uma quinta a poucos quilômetros de zambujeira do mar
ela se chama herdade do touril
e tem várias casinhas caiadas
tudo tão branco que cegaria nossos olhos
assim que chegássemos lá com nossas malas
termoplásticas
respirando com as duas narinas
prendendo teu cabelo e deixando a marrafa flutuar
no cheiro de água salgada
o terceiro filme daquela trilogia do linklater
o vulgarismo do amor envelhecido
feito aquele eletrodoméstico que todo mundo sabe
que vai parar de funcionar
quando alguém tirar do lugar
mas hoje, hoje tem vírgula no meio
e há um fundo de mim que me imagina
enterrando a cinza frágil desta sorte
em um alentejo que nunca nos coube
e há um fundo de mim que sabe
que este calvário é mantido a muita lida
pra render verbo e render plural
pois há algo de permanente
em tudo que nos silencia
Fotografia: Grupo de pessoas com automóvel ao fundo – Autoria não identificada (Acervo Instituto Moreira Salles).